“Você perdeu o controle” — como o estereótipo da mulher louca reforça a desigualdade de gênero
Em 1892, a escritora americana Charlotte Perkins Gilman descreveu o que só meio século depois a literatura chamaria de gaslighting. O conto “O Papel de Parede Amarelo” seria mais uma autobiografia, não fosse a forma universal e inédita com que Gilman narra o estereótipo da mulher louca.
A personagem central enfrenta aquilo que o marido considera “depressão nervosa”, “uma ligeira propensão à histeria”. Para ela, porém, um trabalho, menos contrariedades, mais convívio social e estímulos resolveria o tal “problema dos nervos” — o qual nem sequer reconhece sofrer.
Não se sabe seu nome ou o que faz da vida, mas as informações que faltam sobre a mulher do conto sobram em relação ao homem com quem divide espaço, John: um médico “atencioso e amável”, que “não permite um passo sem instruções especiais” e detesta que ela escreva.
Como solução, os dois se mudam para uma casa de campo provisória. O marido instala a mulher no quarto que era das crianças, lhe nega o direito de cuidar do próprio filho e, com o tempo, passa a convencê-la de que ela perdeu o controle de si.
Segundo Elaine R. Hedges, estudiosa da contribuição das mulheres às artes e à literatura nos Estados Unidos, “O Papel de Parede Amarelo” é um dos raros textos literários de uma autora do século 19 que confrontam diretamente a política sexual das relações homem-mulher, marido-esposa.
Com inúmeras metáforas, o conto de Gilman põe em evidência um comportamento que ganhou nome em 1938 com a peça inglesa “Gaslight”, na qual um homem sugere a loucura da mulher para ficar com sua fortuna.
De acordo com a ONG Think Olga, gaslighting é “a violência emocional por meio de manipulação psicológica, que leva a mulher e todos ao seu redor a acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz. Uma forma de fazer a mulher duvidar de seu senso de realidade, de suas próprias memórias, percepção, raciocínio e sanidade”.
Não por acaso, Hedges expõe que, por muitos anos, a história de Gilman “foi lida basicamente como um conto de terror na tradição de [Edgar Allan] Poe — e também como uma narrativa de aberração mental”. Os elogios só vieram “com base no argumento de que Gilman tinha capturado na literatura o mais ‘detalhado relato de insanidade incipiente’”.
Para a filósofa Marcia Tiburi, a profissão do marido não é aleatória. Médico, ele sintetiza a razão e se contrapõe à emoção que cabe à mulher naquele momento. Como homem de ciência, detém a autoridade para explicar a experiência do outro, o que “está em cena na estigmatização da histeria como uma doença feminina”.
O mito da histeria enquanto doença feminina por muitos anos encontrou respaldo na própria etimologia. De origem grega, a palavra significa útero e, segundo a psicóloga Helena Riter, foram os escritos de Hipócrates que mantiveram a crença da Antiguidade de que o órgão teria a capacidade de se movimentar pelo corpo e causar os males à mulher.
A associação que colocou histeria e mulheres lado a lado só começou a ser desfeita com o médico francês Martin Charcot e o avanço da psicanálise. De acordo com Riter, foi Charcot quem apresentou a ideia de homens histéricos e fez com que a doença despertasse interesse científico — levando Sigmund Freud, anos depois, a estudar e a teorizar sobre os principais sintomas histéricos, que vão desde dores de cabeça à perda de sensibilidade em partes do corpo.
Apesar da contribuição médica, para Tiburi, o estereótipo da loucura e da histeria, que ainda persegue as mulheres, é a ideologia do homem no contexto de uma evidente política sexual. “Nesse contexto, a invalidez da mulher é um fator necessário para o bom funcionamento do controle a ser exercido sobre ela.”
De acordo com o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o discurso social construído a partir das diferenças biológicas dos sexos gera um poder simbólico que naturaliza a violência. Assim, a reafirmação da mulher enquanto histérica, incapaz ou sem controle de si, a partir de suas características físicas, é uma ferramenta que legitima a dominação masculina.
A mulher descrita por Gilman nos convida a pensar sobre as estratégias de invisibilidade que impedem o avanço da equidade de gênero e sobre a necessidade de que a mudança comece pelo discurso. Aqui, como escreveu a psicanalista Anna Carolina Nogueira, não cabe negar que as mulheres podem ser histéricas ou loucas-de-tudo (no sentido clínico de Jacques Lacan). Algumas são. Mas não por serem mulheres.
Com colagens da fantástica @eugenia_loli